quinta-feira, 27 de novembro de 2008

ARGÔNIO


A constatação da impotência foi como a morte naquela noite fria e garoenta em que, pela primeira vez na vida, Pomba Triste procurou consolo e prazer na carne de mulher. A cabeceira da cama virou o ombro do mundo e as mãos, espalmadas nos lados da cabeça, ao invés de esconderem a alma e o corpo, publicavam o desespero.
Não, não poderia ter sido o gás. A coisa deveria ter vindo de antes. Não, também não era. Nos momentos de intimidade solitária, quando suas mãos viravam corpos de atrizes e os dedos eram coxas, vaginas e pelos, a virilidade de Pomba Triste era de aço carbono, inoxidável e vergalhão.
A prostituta olhou para o dinheiro sobre o criado-mudo, para a porta e não viu nada. A garoa, lá fora, recebeu um corpo quente e frio, vivo e morto, inteiro e em pedaços. O amanhã encontraria Pomba no serviço, com sua calça amarrotada, roçando máquinas e ferramentas, curtindo as 12 horas de cativeiro remunerado; a obrigatoriedade de ficar em pé, os gritos do mestre e os míseros trocados por hora. ..........
II
Cavaleiros andantes, astronautas, monstros do espaço, os soldadores chamavam a atenção com seus bonés de couro, protetores de orelhas como as próprias orelhas, luvas até os cotovelos, aventais e botas de cano longo. Colocavam os capacetes e pronto: completavam a imagem de ficção científica, gerada na cabeça de quem os via.
Sentados em bancadas nas oficinas, beiradas de valas e estruturas metálicas, pareciam ter vida de constante espera. Eram sempre os últimos requisitados para qualquer trabalho e, enquanto aguardavam, ficavam falando besteiras, fumando em silêncio ou fazendo biscates: anéis de aço, pulseiras e brincos de arame, que depois adornariam colos de amantes, dedos de filhos, orelhas de esposas. Havia os do setor de solda elétrica e os que lidavam com argônio, gás de cheiro enjoativo que, em contato com o oxigênio, era o único que liberava o calor necessário à solda de aço inoxidável. Estes profissionais trabalhavam com uma espécie de isqueiro longo, que manobravam com uma das mãos, enquanto com a outra seguravam o eletrodo
O pessoal da elétrica era mais relaxado, pelas circunstâncias de seu próprio trabalho. Os grandes alicates sujos, a chuva de faíscas, a escuridão da fumaça desprendida dos sempre enferrujados tubos de aço carbono eram o cenário pouco atraente de seu serviço.
A turma do argônio , porém, carregava um estigma: o gás tinha fama de, precocemente, interromper a virilidade do homem- broxar, como se dizia na obra- fato que tornava aqueles profissionais motivos de gozações em todas as firmas. Quantas brigas, narizes quebrados e desinteligências não foram consequências de tais brincadeiras?
- Já notaram como os sujeitos do argônio são meio inchados e de cara brilhante? Este gás é do cacete.
Poderia ser o Mário encanador falando com o Cícero montador; o apontador Bigode sussurrando para alguém do departamento de pessoal; as confidências do carpinteiro Cantídio com seu ajudante. Palavras que não escapavam à atenção de Pomba Triste, ajudante de encanador, apenas uma semana na obra, 18 anos de vida, mil de expectativas e esperanças.

Quatro e meia da tarde. Uma folha de saque de fundo de garantia, estimulada pela brisa, caiu da mesa, flanou e parou perto da cesta de lixo. O departamento de pessoal era um túmulo, os escriturários, mortos-vivos; as máquinas de escrever, lápides , e os formulários, flores burocráticas.
A razão do silêncio estava lá fora, onde os trabalhadores, que há pouco tinham recebido o pagamento, faziam fila para devolverem os envelopes, intatos. Estavam inconformados com o fato de não ter sido pago um feriado trabalhado e seu movimento era liderado por Negão, soldador da elétrica, cuja voz soava como um réquiem para os rapazes do escritório.
- Aqui ninguém vai receber o pagamento enquanto não for resolvida esta situação. Não há escravos na obra, trabalhou tem de ganhar. A gente é explorado , ganha uma miséria e ainda querem que trabalhemos de graça? Eles que vão chupar prego até virar parafuso.
Negão, em cima de um tubo de aço carbono, era a indignação em pessoa. A seu lado, prosseguia a romaria de trabalhadores, envelopes na mão, como velas que se leva a um santo. Pomba Triste ouvia de longe a voz do soldador, que só não era mais forte que o som de seus próprios pensamentos, remoídos e remoendo as lembranças da noite anterior.
Foi efetivamente desperto para o que ocorria na área quando passou perto dele o técnico Lindelço, senhor todo- poderoso da obra, vomitando um “filhos da puta” pelos lábios desertos de riso. Tomara conhecimento do protesto em seu escritório, para onde se dirigira um assustado apontador. Seus passos em direção ao departamento de pessoal eram duros, pensando, quem sabe, estar pisando cabeças de quem, após o sangue, deveria dar a carne como complemento. Passou perto de Pomba Triste. “Este não vai broxar nunca, pois vive longe do gás”, riu, Pomba, com o que pensou ser uma boa piada.

..........
III
A folha de fundo de garantia já havia sido recolhida ao cesto quando, como lázaros, os moços do escritório ouviram a voz de Lindelço:
- O que está acontecendo aqui?
O silêncio que surgiu foi quebrado pela resposta de Negão, em voz tão segura quanto antes, no comando do protesto.
- Trabalhamos e queremos ganhar.
Os olhos gelados do técnico percorreram o grupo de trabalhadores querendo, talvez, identificar as bocas que ensaiaram frases de apoio. Uma inspeção desafiadora: a intimidação muda, usual em sua experiência de tocador de obra.
- Onde você mora?
- Em Santos- respondeu Negão, estranhando o tipo de pergunta.
- Lá foi feriado?
- Não.
- Em São Vicente foi?
- Não.
- Então, por que vamos pagar dobrado um feriado que só aconteceu aqui, em Guarujá?
O duelo de perguntas e respostas era acompanhado por dezenas de ouvidos e olhos curiosos, vitrines de uma ansiedade conjunta, nascida de uma realidade injusta: a miséria.
- Feriado municipal tem de ser respeitado e pago em dobro, seja lá onde for. Afinal de contas, trabalhamos aqui e não em Santos ou São Vicente.
- Peguem os envelopes de volta. Mês que vem pagamos a diferença.
Lindelço acabou de falar , deu meia-volta e retornou a seu escritório, deixando , em seu lugar, um ponto de exclamação.
- Vitória!
- Ele reconheceu nossos direitos.
- Incrível!
- E agora, o que vai acontecer com o Negão?
- Eu fiquei na minha.
- Lindelço é foda. Não vai perder essa parada.
- Isto aqui vai virar um inferno, tou te dizendo.
- Que nada. Ele é vivo pra cacete, reconheceu a derrota e vai ficar na dele.
- Pô, mas que greve mais esquisita, heim?
- Pois é, ó meu. A maioria pára de trabalhar e a gente não aceitou receber.
- Quem inventou isso?
- Sei lá, deve ter sido o Negão.
A área era um tumulto e Pomba Triste, só pensamentos, ainda se sentia um pouco assustado com o que acontecera momentos antes. Uma frase, entre tantas outras, ficara gravada em sua memória- a de Mário encanador, quando Lindelço chegou ao local da concentração: ” Este cara está a serviço dos patrões, vive ferrando a gente. É uma coisa que atrapalha e que precisa ser destruída”.
Sem dúvida, o Mário não gostava do Lindelço. Mas, quem gostava daquele mau humor frequente; o olhar gelado; a boca sem risos; a garantia do trabalho estafante e salário de fome; o amigo das costas na chuva; o aval das horas extras obrigatórias; o anti-todos nós os explorados?

..........
iV
Foi o ajudante de soldador Jaguaré quem viu Negão entrar no escritório de Lindelço e, alguns minutos depois, sair seguro nos braços de dois homens, enquanto um terceiro ia na frente. Jaguaré , que estava sobre um andaime, puxando por corda um cabo de solda, desceu imediatamente.
- Ganharam o Negão- gritou para seu oficial , Cícero, que se preocupava em pegar um eletrodo na estufa.
A notícia logo se espalhou pela obra. Sim, Lindelço havia chamado a polícia, momentos após notar que os operários, ao recolherem seus envelopes de pagamento, haviam se dispersado. Negão, sem desconfiar de nada, fora chamado ao escritório e lá surpreendido pelos agentes, que, agora, o levavam para um automóvel estacionado em frente dos boxes de relógios de ponto.
Contudo, antes que os policiais chegassem ao veículo, tiveram a passagem impedida por um grupo de operários que, avisados por Jaguaré, dirigiram-se ao local, para saber o que estava acontecendo.
- Por que estão levando o Negão?- indagou Cícero, adiantando-se aos demais.
- Calma, pessoal! Ele só vai prestar uns esclarecimentos. Volta já.

A resposta do policial que seguia ä frente dos dois que conduziam Negão não convenceu os operários, cujo número aumentava cada vez mais no pátio da portaria. Ali estavam o pessoal da elétrica, do argônio, da tubulação, carpinteiros, um grupo de eletricistas de campo e alguns braçais.
- Ele não é bandido para ser levado desse jeito. Por que não fazem o Negão prestar esclarecimentos aqui mesmo, na obra?
A pergunta de Cícero ficou sem resposta. Os agentes entreolharam-se e fizeram menção de continuar andando. O grupo de trabalhadores fechou-se em torno deles. Pararam.
- Vai chamar o Lindelço para conversar com esses caras.
Assim que ouviu a ordem de um dos que seguravam Negão, o agente que falara com Cícero tentou furar o cerco humano, com rudes pedidos de licença. Mas os corpos dos operários , solidários com o companheiro detido, formavam uma paliçada humana. Os olhos transmitiam revolta, os braços cruzados ou soltos ao longo dos corpos, punhos fechados, indicavam predisposição para a espera ou preparação para a luta.
Ninguém estava acreditando que o policial chamaria Lindelço e, mesmo que isso ocorresse, o técnico não ousaria conversar com os operários nas atuais circunstâncias.
- Ou você solta o Negão ou ninguém sai daqui.
Cícero falou e viu, diante do rosto, a figura sinistra de um cano de revólver. O agente barrado perdera a paciência.
- Se não me deixarem passar, abro caminho a bala!

..........
V
Não acabou de falar. A explosão e o fogo que se seguiram abafaram sua voz e todos os outros sons do momento. Em segundos, o pátio ficou vazio, com os trabalhadores correndo em todas as direções, procurando esconder-se não sabiam de quê. Negão, livre de repente de seus guardas, correu, refugiando-se atrás de um compressor. Os policiais seguiram em direção à portaria.
A oficina e o escritório da administração estavam em chamas. Pequenas explosões seguiam-se, de instantes a instantes, não deixando dúvidas de que o fogo atingira o depósito de oxigênio e argônio.
As primeiras informações trazidas por quem estivera próximo do local diziam que o fogo surpreendera o técnico Lindelço em seu escritório, onde se trancara momentos após a saída dos policiais que conduziam Negão.
- Nem ele merecia morrer desse jeito.
O comentário de um encanador perdeu-se entre gritos de ordens dos bombeiros que se aproximavam. A área foi isolada , garantindo que o fogo não passaria para outras unidades. Mas o depósito de garrafas de argônio não escaparia ä destruição total.

..........
VI
A luzinha era como uma estrela ou bolinha de gude azul , daquelas que a gente , quando criança, usava como dedeira e nunca arriscava colocar no triângulo desenhado no barro do chão. Saía como ejaculada do charuto metálico que Pomba Triste segurava firme , enquanto a fumaça, fina, nauseante, serpenteava até sumir no escuro do teto.
Pomba olhava o eletrodo e lembrava a frase do baiano Feitosa, contador de histórias, a alegria da hora do almoço: “Argônio broxa, baixa o pau”. Diante do que lhe ocorrera na noite anterior, já não era coisa estranha imaginar aquela luznha frágil sepultando virilidades, enquanto humilhava a couraça do inoxidável, transformada em líquido, fumaça e vapor.
Mas o Feitosa não poderia ter mentido, ele , soldador da elétrica, condenado a segurar aquele alicate esquisito, o eletrodo como um palito preto, vomitando faísca, fumaça, cinza e barulho? Como esquecer, porém, o que lhe acontecera naquele quarto de bordel e o montador Cícero em sua constante obsessão “morro mas não trabalho com uma porra dessas?” E o que dizer do Mineiro, manejador de argônio, de quem se falava que era traído pela mulher, professorinha insaciada que- comentavam- dava para todo mundo na vila operária?
Era o argônio.
Era o Pomba Triste pensando no argônio.
Era o Mineiro soldando com argônio.
Negão preso lá fora, Cícero discutindo com os policiais, o cheiro doce, não-açúcar, enjoativo, ubíquo, na boca, nariz, cabeça, parasitado no estômago, em casa, no ônibus e, quem sabe, na cama da mulher aberta, desperta e insatisfeita.
- Nunca me aconteceu isso antes.
O chavão e Pomba Triste lembrando a cena do bordel, a mão firme no alicate, a chama azul formando um risco brilhante no ar, a cópula do fogo e do argônio no cilindro aberto.
- Uma coisa que atrapalha precisa ser destruída.
A frase do encanador Mário. Foi a última que Pomba disse.

Autor: Paulo Motta

Um comentário:

Cadinho RoCo disse...

Tudo por causa de um feriado municipal.
Cadinho RoCo