quinta-feira, 27 de novembro de 2008

OS OLHOS DE BEATRIZ

Os Olhos de Beatriz
(ao mestre Edgar Allan Poe, com carinho)

Ela não se achava propriamente bonita. Talvez os outros a achassem. Tinha a beleza que era de se esperar das mulheres de sua idade. O rosto era mais jovem que o corpo. A alma era muito mais velha. Porém, seu maior encanto era um incrível par de olhos enigmáticos, de um verde meio castanho lembrando o musgo das pedras. Podiam ser profundos, calmos, melancólicos, aflitos, promissores, desesperados. Ou tudo ao mesmo tempo, se ela assim desejasse. Olhos de cobra ou de esfinge. De salvação ou de abismo. De prazer ou perdição.
Era com tal olhar que cativava os ouvintes, prendia a atenção dos interlocutores, acalmava as crianças, enfeitiçava os amigos, seduzia seus homens. Não havia quem não amasse seus olhos. Mesmo quem não tinha por ela nenhum apreço, quem a detestasse mesmo, a desprezasse com força e vontade, precisava reconhecer o prodígio de que aqueles olhos eram capazes. Por essas esferas de matéria para ela indefinida (de que são feitos os olhos, afinal?) é que seguia conhecendo a vida. Lia, estudava, via as cores, assistia a filmes, observava as pessoas, identificava padrões. Pelos olhos o mundo tinha passagem de entrada para o seu universo interior, para seus planetas particulares, suas órbitas privativas, seus labirintos secretos, suas galáxias inexploradas, seus outros tantos “eus”.
Tais olhos provocavam reações extremas. Havia quem se fizesse cativo do olhar de Beatriz e se sentisse imediatamente atingido por alguma coisa que não era possível definir. Outras vezes, em que a procura por uma explicação para o mistério que tornasse tal olhar plausível, inteligível, humano, que desmontasse o mito dos olhos daquela mulher se transformava em obsessão. Foi assim que aqueles olhos começaram a perder a luz e a adquirir, de modo gradativo, quase imperceptível, uma leve sombra, que foi evoluindo aos poucos expressão apreensiva, que se tornava um pouco mais intensa a cada dia. Sombra do medo.
Beatriz se sentia observada por outros olhos, olhos diferentes que se destacavam da multidão, sempre os mesmos, sempre sedentos, sempre esquivos, mas sempre ali, na espreita dos seus. Queria saber quem a espionava assim, quem a perseguia em todos os lugares, quem registrava seus movimentos como um fotógrafo de almas. Não conseguia ver nada além do que todos viam.
Por outro lado, seu algoz desejava enxergar através dos olhos de Beatriz. Queria ver o que ela via, precisava desesperadamente da luz que era absorvida por ela, através dela, pelos olhos dela. E assim passavam os dias. Ele espreitava, ela fugia. Sabia que o encontro, mais cedo ou mais tarde, seria inevitável. Conseguia sentir o momento se aproximando como ferro quente na carne, o dia em que ficaria frente a frente com quem há tanto tempo a observava. Sabia que, mesmo enquanto dormia, tinha o olhar do verdugo sobre ela. Sabia que, quando a hora chegasse, não perguntaria nada, e também nada ouviria. Sabia perfeitamente o que desejava o seu caçador e o que iria ceder resignada para reconquistar a paz de viver em paz.
Foi no final de uma tarde fria - o sol poente manchava de sangue o azul limpo do céu. Beatriz pousou seu olhar nos olhos quase vazios do homem que a perseguia com tamanha devoção que já o entendia como parte dela mesma, como conseqüência inevitável do ato de existir, de viver, de simplesmente ser. Um já não existia sem o outro, e um não sobreviveria se o outro existisse. Ficando em frente ao homem que já era tão ela, sentia na própria carne o tremor da angústia perturbada que ele sofria, conseguia ler a angústia, a sede desesperada, a necessidade e a urgência que o moviam fazendo com que ele a seguisse. Da mesma forma, conseguia prever o que ia perder, pois assim eram as coisas, pois assim se fazia necessário. Por isso não emitiu um único som quando ele se aproximou ainda trêmulo, quando viu o brilho de algo girando à sua frente, um corisco, um raio cortando a luz. Por isso continuou calada quando o mundo escureceu, quando junto com a luz se foi o medo, quando ouviu os passos que se afastavam, a respiração rápida e ofegante do homem que levava nas mãos manchadas de sangue seus olhos verdes, agora opacos, sem brilho e sem luz. Caiu de joelhos em seu novo mundo de trevas e, pela primeira vez em muito tempo, não sentiu sobre ela a lâmina fria e afiada da obsessão. O escuro, enfim, era seu descanso, sua trégua e seu conforto.

Autor: Denise
TEXTO PUBLICADO NA COMUNIDADE EM 18JAN07

Um comentário:

Cinebairro Blogs disse...

tenho um livro em e-book com fortes influencias de poe


http://recantodasletras.uol.com.br/e-livros/1242521