quinta-feira, 27 de novembro de 2008

ARGÔNIO


A constatação da impotência foi como a morte naquela noite fria e garoenta em que, pela primeira vez na vida, Pomba Triste procurou consolo e prazer na carne de mulher. A cabeceira da cama virou o ombro do mundo e as mãos, espalmadas nos lados da cabeça, ao invés de esconderem a alma e o corpo, publicavam o desespero.
Não, não poderia ter sido o gás. A coisa deveria ter vindo de antes. Não, também não era. Nos momentos de intimidade solitária, quando suas mãos viravam corpos de atrizes e os dedos eram coxas, vaginas e pelos, a virilidade de Pomba Triste era de aço carbono, inoxidável e vergalhão.
A prostituta olhou para o dinheiro sobre o criado-mudo, para a porta e não viu nada. A garoa, lá fora, recebeu um corpo quente e frio, vivo e morto, inteiro e em pedaços. O amanhã encontraria Pomba no serviço, com sua calça amarrotada, roçando máquinas e ferramentas, curtindo as 12 horas de cativeiro remunerado; a obrigatoriedade de ficar em pé, os gritos do mestre e os míseros trocados por hora. ..........
II
Cavaleiros andantes, astronautas, monstros do espaço, os soldadores chamavam a atenção com seus bonés de couro, protetores de orelhas como as próprias orelhas, luvas até os cotovelos, aventais e botas de cano longo. Colocavam os capacetes e pronto: completavam a imagem de ficção científica, gerada na cabeça de quem os via.
Sentados em bancadas nas oficinas, beiradas de valas e estruturas metálicas, pareciam ter vida de constante espera. Eram sempre os últimos requisitados para qualquer trabalho e, enquanto aguardavam, ficavam falando besteiras, fumando em silêncio ou fazendo biscates: anéis de aço, pulseiras e brincos de arame, que depois adornariam colos de amantes, dedos de filhos, orelhas de esposas. Havia os do setor de solda elétrica e os que lidavam com argônio, gás de cheiro enjoativo que, em contato com o oxigênio, era o único que liberava o calor necessário à solda de aço inoxidável. Estes profissionais trabalhavam com uma espécie de isqueiro longo, que manobravam com uma das mãos, enquanto com a outra seguravam o eletrodo
O pessoal da elétrica era mais relaxado, pelas circunstâncias de seu próprio trabalho. Os grandes alicates sujos, a chuva de faíscas, a escuridão da fumaça desprendida dos sempre enferrujados tubos de aço carbono eram o cenário pouco atraente de seu serviço.
A turma do argônio , porém, carregava um estigma: o gás tinha fama de, precocemente, interromper a virilidade do homem- broxar, como se dizia na obra- fato que tornava aqueles profissionais motivos de gozações em todas as firmas. Quantas brigas, narizes quebrados e desinteligências não foram consequências de tais brincadeiras?
- Já notaram como os sujeitos do argônio são meio inchados e de cara brilhante? Este gás é do cacete.
Poderia ser o Mário encanador falando com o Cícero montador; o apontador Bigode sussurrando para alguém do departamento de pessoal; as confidências do carpinteiro Cantídio com seu ajudante. Palavras que não escapavam à atenção de Pomba Triste, ajudante de encanador, apenas uma semana na obra, 18 anos de vida, mil de expectativas e esperanças.

Quatro e meia da tarde. Uma folha de saque de fundo de garantia, estimulada pela brisa, caiu da mesa, flanou e parou perto da cesta de lixo. O departamento de pessoal era um túmulo, os escriturários, mortos-vivos; as máquinas de escrever, lápides , e os formulários, flores burocráticas.
A razão do silêncio estava lá fora, onde os trabalhadores, que há pouco tinham recebido o pagamento, faziam fila para devolverem os envelopes, intatos. Estavam inconformados com o fato de não ter sido pago um feriado trabalhado e seu movimento era liderado por Negão, soldador da elétrica, cuja voz soava como um réquiem para os rapazes do escritório.
- Aqui ninguém vai receber o pagamento enquanto não for resolvida esta situação. Não há escravos na obra, trabalhou tem de ganhar. A gente é explorado , ganha uma miséria e ainda querem que trabalhemos de graça? Eles que vão chupar prego até virar parafuso.
Negão, em cima de um tubo de aço carbono, era a indignação em pessoa. A seu lado, prosseguia a romaria de trabalhadores, envelopes na mão, como velas que se leva a um santo. Pomba Triste ouvia de longe a voz do soldador, que só não era mais forte que o som de seus próprios pensamentos, remoídos e remoendo as lembranças da noite anterior.
Foi efetivamente desperto para o que ocorria na área quando passou perto dele o técnico Lindelço, senhor todo- poderoso da obra, vomitando um “filhos da puta” pelos lábios desertos de riso. Tomara conhecimento do protesto em seu escritório, para onde se dirigira um assustado apontador. Seus passos em direção ao departamento de pessoal eram duros, pensando, quem sabe, estar pisando cabeças de quem, após o sangue, deveria dar a carne como complemento. Passou perto de Pomba Triste. “Este não vai broxar nunca, pois vive longe do gás”, riu, Pomba, com o que pensou ser uma boa piada.

..........
III
A folha de fundo de garantia já havia sido recolhida ao cesto quando, como lázaros, os moços do escritório ouviram a voz de Lindelço:
- O que está acontecendo aqui?
O silêncio que surgiu foi quebrado pela resposta de Negão, em voz tão segura quanto antes, no comando do protesto.
- Trabalhamos e queremos ganhar.
Os olhos gelados do técnico percorreram o grupo de trabalhadores querendo, talvez, identificar as bocas que ensaiaram frases de apoio. Uma inspeção desafiadora: a intimidação muda, usual em sua experiência de tocador de obra.
- Onde você mora?
- Em Santos- respondeu Negão, estranhando o tipo de pergunta.
- Lá foi feriado?
- Não.
- Em São Vicente foi?
- Não.
- Então, por que vamos pagar dobrado um feriado que só aconteceu aqui, em Guarujá?
O duelo de perguntas e respostas era acompanhado por dezenas de ouvidos e olhos curiosos, vitrines de uma ansiedade conjunta, nascida de uma realidade injusta: a miséria.
- Feriado municipal tem de ser respeitado e pago em dobro, seja lá onde for. Afinal de contas, trabalhamos aqui e não em Santos ou São Vicente.
- Peguem os envelopes de volta. Mês que vem pagamos a diferença.
Lindelço acabou de falar , deu meia-volta e retornou a seu escritório, deixando , em seu lugar, um ponto de exclamação.
- Vitória!
- Ele reconheceu nossos direitos.
- Incrível!
- E agora, o que vai acontecer com o Negão?
- Eu fiquei na minha.
- Lindelço é foda. Não vai perder essa parada.
- Isto aqui vai virar um inferno, tou te dizendo.
- Que nada. Ele é vivo pra cacete, reconheceu a derrota e vai ficar na dele.
- Pô, mas que greve mais esquisita, heim?
- Pois é, ó meu. A maioria pára de trabalhar e a gente não aceitou receber.
- Quem inventou isso?
- Sei lá, deve ter sido o Negão.
A área era um tumulto e Pomba Triste, só pensamentos, ainda se sentia um pouco assustado com o que acontecera momentos antes. Uma frase, entre tantas outras, ficara gravada em sua memória- a de Mário encanador, quando Lindelço chegou ao local da concentração: ” Este cara está a serviço dos patrões, vive ferrando a gente. É uma coisa que atrapalha e que precisa ser destruída”.
Sem dúvida, o Mário não gostava do Lindelço. Mas, quem gostava daquele mau humor frequente; o olhar gelado; a boca sem risos; a garantia do trabalho estafante e salário de fome; o amigo das costas na chuva; o aval das horas extras obrigatórias; o anti-todos nós os explorados?

..........
iV
Foi o ajudante de soldador Jaguaré quem viu Negão entrar no escritório de Lindelço e, alguns minutos depois, sair seguro nos braços de dois homens, enquanto um terceiro ia na frente. Jaguaré , que estava sobre um andaime, puxando por corda um cabo de solda, desceu imediatamente.
- Ganharam o Negão- gritou para seu oficial , Cícero, que se preocupava em pegar um eletrodo na estufa.
A notícia logo se espalhou pela obra. Sim, Lindelço havia chamado a polícia, momentos após notar que os operários, ao recolherem seus envelopes de pagamento, haviam se dispersado. Negão, sem desconfiar de nada, fora chamado ao escritório e lá surpreendido pelos agentes, que, agora, o levavam para um automóvel estacionado em frente dos boxes de relógios de ponto.
Contudo, antes que os policiais chegassem ao veículo, tiveram a passagem impedida por um grupo de operários que, avisados por Jaguaré, dirigiram-se ao local, para saber o que estava acontecendo.
- Por que estão levando o Negão?- indagou Cícero, adiantando-se aos demais.
- Calma, pessoal! Ele só vai prestar uns esclarecimentos. Volta já.

A resposta do policial que seguia ä frente dos dois que conduziam Negão não convenceu os operários, cujo número aumentava cada vez mais no pátio da portaria. Ali estavam o pessoal da elétrica, do argônio, da tubulação, carpinteiros, um grupo de eletricistas de campo e alguns braçais.
- Ele não é bandido para ser levado desse jeito. Por que não fazem o Negão prestar esclarecimentos aqui mesmo, na obra?
A pergunta de Cícero ficou sem resposta. Os agentes entreolharam-se e fizeram menção de continuar andando. O grupo de trabalhadores fechou-se em torno deles. Pararam.
- Vai chamar o Lindelço para conversar com esses caras.
Assim que ouviu a ordem de um dos que seguravam Negão, o agente que falara com Cícero tentou furar o cerco humano, com rudes pedidos de licença. Mas os corpos dos operários , solidários com o companheiro detido, formavam uma paliçada humana. Os olhos transmitiam revolta, os braços cruzados ou soltos ao longo dos corpos, punhos fechados, indicavam predisposição para a espera ou preparação para a luta.
Ninguém estava acreditando que o policial chamaria Lindelço e, mesmo que isso ocorresse, o técnico não ousaria conversar com os operários nas atuais circunstâncias.
- Ou você solta o Negão ou ninguém sai daqui.
Cícero falou e viu, diante do rosto, a figura sinistra de um cano de revólver. O agente barrado perdera a paciência.
- Se não me deixarem passar, abro caminho a bala!

..........
V
Não acabou de falar. A explosão e o fogo que se seguiram abafaram sua voz e todos os outros sons do momento. Em segundos, o pátio ficou vazio, com os trabalhadores correndo em todas as direções, procurando esconder-se não sabiam de quê. Negão, livre de repente de seus guardas, correu, refugiando-se atrás de um compressor. Os policiais seguiram em direção à portaria.
A oficina e o escritório da administração estavam em chamas. Pequenas explosões seguiam-se, de instantes a instantes, não deixando dúvidas de que o fogo atingira o depósito de oxigênio e argônio.
As primeiras informações trazidas por quem estivera próximo do local diziam que o fogo surpreendera o técnico Lindelço em seu escritório, onde se trancara momentos após a saída dos policiais que conduziam Negão.
- Nem ele merecia morrer desse jeito.
O comentário de um encanador perdeu-se entre gritos de ordens dos bombeiros que se aproximavam. A área foi isolada , garantindo que o fogo não passaria para outras unidades. Mas o depósito de garrafas de argônio não escaparia ä destruição total.

..........
VI
A luzinha era como uma estrela ou bolinha de gude azul , daquelas que a gente , quando criança, usava como dedeira e nunca arriscava colocar no triângulo desenhado no barro do chão. Saía como ejaculada do charuto metálico que Pomba Triste segurava firme , enquanto a fumaça, fina, nauseante, serpenteava até sumir no escuro do teto.
Pomba olhava o eletrodo e lembrava a frase do baiano Feitosa, contador de histórias, a alegria da hora do almoço: “Argônio broxa, baixa o pau”. Diante do que lhe ocorrera na noite anterior, já não era coisa estranha imaginar aquela luznha frágil sepultando virilidades, enquanto humilhava a couraça do inoxidável, transformada em líquido, fumaça e vapor.
Mas o Feitosa não poderia ter mentido, ele , soldador da elétrica, condenado a segurar aquele alicate esquisito, o eletrodo como um palito preto, vomitando faísca, fumaça, cinza e barulho? Como esquecer, porém, o que lhe acontecera naquele quarto de bordel e o montador Cícero em sua constante obsessão “morro mas não trabalho com uma porra dessas?” E o que dizer do Mineiro, manejador de argônio, de quem se falava que era traído pela mulher, professorinha insaciada que- comentavam- dava para todo mundo na vila operária?
Era o argônio.
Era o Pomba Triste pensando no argônio.
Era o Mineiro soldando com argônio.
Negão preso lá fora, Cícero discutindo com os policiais, o cheiro doce, não-açúcar, enjoativo, ubíquo, na boca, nariz, cabeça, parasitado no estômago, em casa, no ônibus e, quem sabe, na cama da mulher aberta, desperta e insatisfeita.
- Nunca me aconteceu isso antes.
O chavão e Pomba Triste lembrando a cena do bordel, a mão firme no alicate, a chama azul formando um risco brilhante no ar, a cópula do fogo e do argônio no cilindro aberto.
- Uma coisa que atrapalha precisa ser destruída.
A frase do encanador Mário. Foi a última que Pomba disse.

Autor: Paulo Motta

PORTA-RETRATO

Era noite, um vento impetuoso entrava pela janela balançando as cortinas de seda que desenhavam no ar ondas de um mar revolto, incontidas pela superfície seca que luta contra esta, contudo é sempre vencida, o ar gélido atingindo minha pele nua, me fez despertar de súbito da cadeira de balanço onde sentei-me e adormeci após longas horas de leitura acerca da vida de um alguém que não era eu, contudo tal constatação só me veio à mente após fechar o livro e perceber que minha vida não se fechara, e naquele quarto escuro eu subsistia enquanto a personagem se completou – finalizou-se – minhas pernas dormentes após tanto tempo encolhidas em minha pseudo-cama, traziam a constatação infame de que eu podia andar... levantei-me, entretanto faltaram-me forças para permanecer de pé, talvez de fato nunca o tivesse feito, meu braço estentido à mesa de centro me fez derrubar o porta-retrato que se quebrou ao cair no chão, poucos segundos antes de eu mesmo cair, o porta-retrato quebrou, entretanto eu permanecia o mesmo, talvez não houvesse mais nada em mim que pudesse ser quebrado, alí no chão permaneci até voltar a força de meus membros, enquanto isso, analizava a foto que se deslocara do porta-retrato antes de seu fim prematuro, era eu quem estava lá? Por algum tempo questionei-me acerca da minha própria imagem no papel – certamente não era eu!, bradava para mim mesmo, buscando basear-me em pintores abstracionistas e suas teorias de que mesmo uma fotografia não mostra com real exatidão a imagem do ser, mas apenas uma de suas nuances, verdadeiramente não era eu, não me sentia eu... a personagem feliz que protagonizava aquela imagem em um dia de festa iluminado pelo sol, não combinava com o ser que agora arremeçado ao chão daquele lugrube ambiente apenas subsistia – de fato nunca fui qualquer personagem – em momento algum o vento parou de soprar... talvez não o quisesse ante aquela cena que não era nova para ele, e a cortina que continuava a balançar desenhava sobre mim sombras que a luz da lua incidia sobre nós – eu olhei para o teto vazio, alí vi a minha própria imagem – sim... aquele sim era eu - repeti continuamente em voz baixa, com alívio, mas não com felicidade, apenas com alívio, agora, enfim, eu tinha um verdadeiro porta-retrato, e este, creio que não se quebraria.

Autor: Marcelo

POSTADO NA COMU EM 08MAR07

SONETO

Para um pintor contemporâneo que de tão bom dispensa a alcunha

Aquelas amarelas almas presas
Todas encarceradas nos vis crânios
Visão apocalíptica em ruínas
E os seres, canibais antropofágicos.

Artista de paisagens tão bucólicas
Gravuras da aparente inocência
Que pelas mãos bizarras e medonhas
Transformam-se em matéria vitupéria

Veio-vindo de selbitz para o delta
Fincar os pés no grande Parnaíba
Da pátria mãe a nova pátria peralta

Assim se vai seguindo, indo arriba
No desmedido horror expressionista
Avante com olhar de afeto a turba.

Autor: Fábio
POSTADO NA COMU EM 11MAR07

CONTO QUE É POEMA

Ao despertar de um sono profundo,me senti sufocado.
Encontrava-me num lugar escuro e totalmente abafado.
O cheiro de terra naquele ambiente claustrofóbico me deixava assustado.
O horror invadiu-me quando pensei ter escutado.
Um lamento suplicante vindo do meu lado.

A sensação de fragilidade começou a me afetar.
Aquela agonia incessante não me deixava sequer gritar.
Pensamentos horríveis não hesitavam em me assombrar.
Tentei,em vão,gritar quando ouvi novamente uma voz sussurrar:
“Acalme-se,ele está a te esperar”.

Minha alma congelou quando lembrei do ocorrido.
Um acidente terrível eu havia sofrido.
Era minha cova onde eu me encontrava,havia morrido.
Ouvi gritos melancólicos vindo de um buraco que havia se abrido.
Chorei silenciosamente de medo quando lembrei de um trato a ser cumprido.
Minha alma ao Demônio eu tinha prometido.

Autor: Blasfêmia.

POSTADO NA COMU EM 12MAR07

OUTRAS ESCRITURAS


Frio de outono

Curve diante dos céus,
Reverencie perante o inferno.
Sepultai os mortos e crucificai os vivos.
Rosas, tulipas e violetas murchas,
A beleza não é eterna,
Dura apenas uma primavera.

Vento seco de outono,
Folhas secas e caídas,
Retratos de uma tristeza diferente.
Uma solidão acompanha,
As pessoas não gostam muito do que você é.
Gostam apenas quando o que você é,
É aquilo que elas querem.
E isso vai sufocando seus desejos
E te matando aos poucos.
-Esta é a minha solidão-

Cantos escuros me aconchegam,
E as estradas por entre o cemitério
Me levam em direção a paz tranqüila
Que só é visível a almas solitárias.

Chacras, auras, darmas...
Sinto entrar em meus pulmões um ar de calmaria.
Agora meu corpo está leve,
Flutuando,
Flutuando,
Flutuando.

Autor: Ðennison dos Anjos

AS FILHAS


Sempre evitou e continuaria evitando. Não seria agora, no fim da vida, que deixaria penetrar-lhe- exatamente naquele resto de existência- as futricas, as picuinhas, os disque-disques delas. Foram anos e anos de distanciamento, dos quais, nada de arrependimentos. Porque a vida – e com justa razão a sua, de 95 anos- fora feita para os grandes problemas, ficando as pequenas coisas dispensáveis no rol disso mesmo: das pequenas coisas dispensáveis.
Hoje todas estariam ali. A empregada já avisara que viriam, cada uma de seu recanto, cada uma com suas histórias.
Viria Ah, de 72 anos, a não lembrar-se de nada , a não ser daquilo que mais a afligisse no momento.
Estaria ali Elle, evidenciando em gestos e caras que tal encontro era episódico, gerado pelo mau estado de saúde da mãe , não representando necessariamente o abrir mão de sua postura aristocrática, obtida à custa de um casamento bem sucedido.
Dhê viria, também: quatro anos mais nova do que Elle, mas parecendo excessivamente curvada ao peso dos 56 anos, decorrência, quem sabe, da carga de informações contidas na inseparável caderneta na qual anotava, há quatro décadas, todos os fatos, ditosos ou malditos, todas as ofensas cobráveis ou impagáveis; todas as datas citáveis ou não. Não faltaria Cêh, feroz adversária de todas as opiniões, meio século de exaustivas contestações, não importando queixar-se de chuva quando todos amaldiçoassem o sol.
Enne, a mais nova, abriria, de seus 50 anos vividos, o chafariz de dores estomacais, lombares e de cabeça, adicionando à hiopocondríaca relação pitadas generosas de chantagem sentimental.
Vieram todas.
E ela as viu chegarem pela pequena abertura da cortina entre o quarto- onde se encontrava- e a sala. Ah acompanhada de Enne; Dhê junto com Elle e Cêh agarrada à caderneta.
Nos últimos meses, elas a visitavam com mais frequência, sempre juntas. Acertavam, de prévio, as datas . Era como uma forma de se reverem e, ao mesmo tempo, colocarem as divergências em dia.
Não mudaram. Se, na infância e adolescência, discutiram pelo presente e pelo futuro, agora atritavam-se pelo passado: uma referência mal feita, um fato mal contado, uma discussão não concluída.
E, como no passado, ela não participava dos debates. Não tomava partidos, não distribuia razões, nem culpas. Da mesma forma como antes não era tão importante saber quem tinha furtado a boneca ou o namorado da quem, tampouco era relevante , hoje, confirmar se, naquela noite de tantos anos atrás, a filha da vizinha havia morrido de caxumba ou sarampo.
Santo distanciamento, que se tornara , nos últimos meses, mais fácil. Muito doente ( aliás, essa era a principal causa das visitas frequentes) , era poupada dos conflitos. Hoje, como há uma semana, suas meninas estavam ali. Avós, bisavós, mas suas sempre queridas meninas. No raiar do século já lhe traziam suas queixas, tentavam elegê-la juíza de suas desavenças; envolvê-la em suas desditas.
Sabiamente, contudo, manteve-se longe dos embates. Desde os tempos em que os queixumes envolviam bonecas desaparecidas e laços de fita rasgados, passando pela época das disputas por namorados, resvalando por intrigas de maridos, filhos e netos, escorregando por fuxicos , provocações, até queda em lágrimas, rangeres de dentes e promessas de nunca mais ver. As queridas meninas, que se juravam amor eterno, finito, porém, ao primeiro encontro, transformado em saudade novamente, quando a distância se fazia real.
Briguentas, rixentas, ressentidas, , sim, mas apaixonadas defensoras do clã, como a advogarem sempre a exclusividade absoluta pelas ofensas entre si. Que não entrasse naquele círculo a ofensa de fora, descabida sempre, mentirosa sempre, invejosa sempre.
A abertura da cortina mostrava Ah – a distraída Ah- brincando com os longos e brancos cabelos, o sorriso doce, a rir-se dos próprios lapsos de memória.
Aristocrata, sim, mas Elle, naquele momento limpando , em gestos elegantes, a armação dourada dos óculos, era linda como sua alma branda, sempre a envolver-se com as dores do próximo.
Dêh, ocupada em anotar alguma coisa na indefectível caderneta, denotava, neste frequente gesto, antes de qualquer propósito revanchista, a organização e ordem que lhe caracterizavam a vida, garantindo-lhe uma existência ordenada e tranquila.
E as doenças de Enne, assim como a irascibilidade de Cêh, escondiam almas frágeis, alimentadas com doses fortes de misticismo, considerando o corpo um fardo e o espírito o único legado válido da Criação.
Reunidas, eram peças de um mosaico,cuja figura maior era o pai, falecido há 50 anos e presente, ainda, nos traços e gestos de uma e outra. Quando morreu, Ah, a mais velha, tinha 22 anos. Ajudara a tomar conta das irmãs, enquanto ela dava aulas para o sustento da família. Curioso como a ausência do pai as fez criar mais um pretexto para discussões, À exceção da mais velha, que, pela convivência, não tinha maiores razões para idealizar a figura paterna, as demais criaram seus estereótipos. Quem era amiga de Elle não tinha dúvidas de que se tratava da filha de um descendente dos barões do café. Os interlocutores de Dhê viam-se diante da herdeira de um médico. Quem ousaria duvidar de Cêh, quando ela apresentava a foto do pai comerciante? E não faltavam a Enne oportunidades de mostrar obturações que lhe haviam sido feitas pelo pai dentista. Vaidades que, sem dúvida, há muito eram perdoadas, diretamente do céu, pelo ex-barbeiro Cândido. Mas que foram , aos poucos, virando verdades absolutas na biografia de cada uma, além, naturalmente, de nova causa de profundas divergências.
Sentia-se fraca. Seriam tantas reflexões? Quase um século de vida pesava, mas não lhe traziam dores. Seria o peso do fastio de viver tanto? Não tinha certeza se suportaria, hoje, estóica, mesmo as pequenas contrariedades. Ao longo da longa vida preocupara-se com as transformações do mundo; mantivera-se atualizada com as questões sociais. As lutas das gentes, refletidas em sua própria luta, habitaram seus pensamentos, nortearam seu comportamento e trabalho. O que era relevante- e nisso incluam as relevâncias de suas filhas- merecera-lhe a consideração devida. Mas agora sentia torpor, uma necessidade absoluta de paz. Suave letargia, largar de corpo , aquela agradável sensação que antecede o sono.
Fechara os olhos; leveza de alguém deitado em nuvens. As vozes lá fora , entretanto, agitaram-na um pouco. Aumentavam de volume, misturavam-se nervosamente, disputavam altissonâncias. Era uma discussão..
- Ele era comerciante, sim, e lembro que todas as tardes levava a gente para o armazém.
- Você está louca? Veja aqui, em minha boca, as obturações que ele fez.
- Papai era advogado e qualquer pessoa de nossa cidade, não sendo caduca como vocês, pode provar isso.
- Meu Deus de misericórdia! Elas desconhecem as origens do próprio pai. Pecam contra os mandamentos divinos, pois não honram quem os gerou.
- Não comece você com suas orações. Aqui em minha caderneta está até anotado o dia em que houve a entrega de umas encomendas em nosso armazém.
- Quem é você para interromper minhas preces?
- É melhor a gente parar essa discussão e vamos falar com a mamãe. Ela é quem vai esclarecer tudo. O corpo não mais a obedecia. Não seria desta vez que ela sairia para o quintal, repetindo um procedimento de tantos anos, em circunstâncias iguais. Lamentou tal impossibilidade, justo quando lhe parecia insuportável mais uma querela. Não sentia remorsos. Anos antes, ouvindo debate igual , fazendo o pão caseiro de que tanto gostavam, teria como única reação, o balançar de cabeça e um riso de complacência.
Suas filhas, suas meninas. Continuavam bonitas e iguais. Não seria agora que distribuiria razões. Nem culpas. Seu corpo flutuou. Lembrou-se do dia em que bebeu vinho pela primeira vez. Estava ao lado do marido e sentira a mesma sensação de leveza de agora. Neste momento, parece-lhe que Cândido está ali, novamente. Estende-lhe a mão direita, sorri e a voz que ouve convida-a a um passeio. Um longo passeio Um distanciamento infinito.

Autor: Paulo Motta

OS OLHOS DE BEATRIZ

Os Olhos de Beatriz
(ao mestre Edgar Allan Poe, com carinho)

Ela não se achava propriamente bonita. Talvez os outros a achassem. Tinha a beleza que era de se esperar das mulheres de sua idade. O rosto era mais jovem que o corpo. A alma era muito mais velha. Porém, seu maior encanto era um incrível par de olhos enigmáticos, de um verde meio castanho lembrando o musgo das pedras. Podiam ser profundos, calmos, melancólicos, aflitos, promissores, desesperados. Ou tudo ao mesmo tempo, se ela assim desejasse. Olhos de cobra ou de esfinge. De salvação ou de abismo. De prazer ou perdição.
Era com tal olhar que cativava os ouvintes, prendia a atenção dos interlocutores, acalmava as crianças, enfeitiçava os amigos, seduzia seus homens. Não havia quem não amasse seus olhos. Mesmo quem não tinha por ela nenhum apreço, quem a detestasse mesmo, a desprezasse com força e vontade, precisava reconhecer o prodígio de que aqueles olhos eram capazes. Por essas esferas de matéria para ela indefinida (de que são feitos os olhos, afinal?) é que seguia conhecendo a vida. Lia, estudava, via as cores, assistia a filmes, observava as pessoas, identificava padrões. Pelos olhos o mundo tinha passagem de entrada para o seu universo interior, para seus planetas particulares, suas órbitas privativas, seus labirintos secretos, suas galáxias inexploradas, seus outros tantos “eus”.
Tais olhos provocavam reações extremas. Havia quem se fizesse cativo do olhar de Beatriz e se sentisse imediatamente atingido por alguma coisa que não era possível definir. Outras vezes, em que a procura por uma explicação para o mistério que tornasse tal olhar plausível, inteligível, humano, que desmontasse o mito dos olhos daquela mulher se transformava em obsessão. Foi assim que aqueles olhos começaram a perder a luz e a adquirir, de modo gradativo, quase imperceptível, uma leve sombra, que foi evoluindo aos poucos expressão apreensiva, que se tornava um pouco mais intensa a cada dia. Sombra do medo.
Beatriz se sentia observada por outros olhos, olhos diferentes que se destacavam da multidão, sempre os mesmos, sempre sedentos, sempre esquivos, mas sempre ali, na espreita dos seus. Queria saber quem a espionava assim, quem a perseguia em todos os lugares, quem registrava seus movimentos como um fotógrafo de almas. Não conseguia ver nada além do que todos viam.
Por outro lado, seu algoz desejava enxergar através dos olhos de Beatriz. Queria ver o que ela via, precisava desesperadamente da luz que era absorvida por ela, através dela, pelos olhos dela. E assim passavam os dias. Ele espreitava, ela fugia. Sabia que o encontro, mais cedo ou mais tarde, seria inevitável. Conseguia sentir o momento se aproximando como ferro quente na carne, o dia em que ficaria frente a frente com quem há tanto tempo a observava. Sabia que, mesmo enquanto dormia, tinha o olhar do verdugo sobre ela. Sabia que, quando a hora chegasse, não perguntaria nada, e também nada ouviria. Sabia perfeitamente o que desejava o seu caçador e o que iria ceder resignada para reconquistar a paz de viver em paz.
Foi no final de uma tarde fria - o sol poente manchava de sangue o azul limpo do céu. Beatriz pousou seu olhar nos olhos quase vazios do homem que a perseguia com tamanha devoção que já o entendia como parte dela mesma, como conseqüência inevitável do ato de existir, de viver, de simplesmente ser. Um já não existia sem o outro, e um não sobreviveria se o outro existisse. Ficando em frente ao homem que já era tão ela, sentia na própria carne o tremor da angústia perturbada que ele sofria, conseguia ler a angústia, a sede desesperada, a necessidade e a urgência que o moviam fazendo com que ele a seguisse. Da mesma forma, conseguia prever o que ia perder, pois assim eram as coisas, pois assim se fazia necessário. Por isso não emitiu um único som quando ele se aproximou ainda trêmulo, quando viu o brilho de algo girando à sua frente, um corisco, um raio cortando a luz. Por isso continuou calada quando o mundo escureceu, quando junto com a luz se foi o medo, quando ouviu os passos que se afastavam, a respiração rápida e ofegante do homem que levava nas mãos manchadas de sangue seus olhos verdes, agora opacos, sem brilho e sem luz. Caiu de joelhos em seu novo mundo de trevas e, pela primeira vez em muito tempo, não sentiu sobre ela a lâmina fria e afiada da obsessão. O escuro, enfim, era seu descanso, sua trégua e seu conforto.

Autor: Denise
TEXTO PUBLICADO NA COMUNIDADE EM 18JAN07