quinta-feira, 27 de novembro de 2008

AS FILHAS


Sempre evitou e continuaria evitando. Não seria agora, no fim da vida, que deixaria penetrar-lhe- exatamente naquele resto de existência- as futricas, as picuinhas, os disque-disques delas. Foram anos e anos de distanciamento, dos quais, nada de arrependimentos. Porque a vida – e com justa razão a sua, de 95 anos- fora feita para os grandes problemas, ficando as pequenas coisas dispensáveis no rol disso mesmo: das pequenas coisas dispensáveis.
Hoje todas estariam ali. A empregada já avisara que viriam, cada uma de seu recanto, cada uma com suas histórias.
Viria Ah, de 72 anos, a não lembrar-se de nada , a não ser daquilo que mais a afligisse no momento.
Estaria ali Elle, evidenciando em gestos e caras que tal encontro era episódico, gerado pelo mau estado de saúde da mãe , não representando necessariamente o abrir mão de sua postura aristocrática, obtida à custa de um casamento bem sucedido.
Dhê viria, também: quatro anos mais nova do que Elle, mas parecendo excessivamente curvada ao peso dos 56 anos, decorrência, quem sabe, da carga de informações contidas na inseparável caderneta na qual anotava, há quatro décadas, todos os fatos, ditosos ou malditos, todas as ofensas cobráveis ou impagáveis; todas as datas citáveis ou não. Não faltaria Cêh, feroz adversária de todas as opiniões, meio século de exaustivas contestações, não importando queixar-se de chuva quando todos amaldiçoassem o sol.
Enne, a mais nova, abriria, de seus 50 anos vividos, o chafariz de dores estomacais, lombares e de cabeça, adicionando à hiopocondríaca relação pitadas generosas de chantagem sentimental.
Vieram todas.
E ela as viu chegarem pela pequena abertura da cortina entre o quarto- onde se encontrava- e a sala. Ah acompanhada de Enne; Dhê junto com Elle e Cêh agarrada à caderneta.
Nos últimos meses, elas a visitavam com mais frequência, sempre juntas. Acertavam, de prévio, as datas . Era como uma forma de se reverem e, ao mesmo tempo, colocarem as divergências em dia.
Não mudaram. Se, na infância e adolescência, discutiram pelo presente e pelo futuro, agora atritavam-se pelo passado: uma referência mal feita, um fato mal contado, uma discussão não concluída.
E, como no passado, ela não participava dos debates. Não tomava partidos, não distribuia razões, nem culpas. Da mesma forma como antes não era tão importante saber quem tinha furtado a boneca ou o namorado da quem, tampouco era relevante , hoje, confirmar se, naquela noite de tantos anos atrás, a filha da vizinha havia morrido de caxumba ou sarampo.
Santo distanciamento, que se tornara , nos últimos meses, mais fácil. Muito doente ( aliás, essa era a principal causa das visitas frequentes) , era poupada dos conflitos. Hoje, como há uma semana, suas meninas estavam ali. Avós, bisavós, mas suas sempre queridas meninas. No raiar do século já lhe traziam suas queixas, tentavam elegê-la juíza de suas desavenças; envolvê-la em suas desditas.
Sabiamente, contudo, manteve-se longe dos embates. Desde os tempos em que os queixumes envolviam bonecas desaparecidas e laços de fita rasgados, passando pela época das disputas por namorados, resvalando por intrigas de maridos, filhos e netos, escorregando por fuxicos , provocações, até queda em lágrimas, rangeres de dentes e promessas de nunca mais ver. As queridas meninas, que se juravam amor eterno, finito, porém, ao primeiro encontro, transformado em saudade novamente, quando a distância se fazia real.
Briguentas, rixentas, ressentidas, , sim, mas apaixonadas defensoras do clã, como a advogarem sempre a exclusividade absoluta pelas ofensas entre si. Que não entrasse naquele círculo a ofensa de fora, descabida sempre, mentirosa sempre, invejosa sempre.
A abertura da cortina mostrava Ah – a distraída Ah- brincando com os longos e brancos cabelos, o sorriso doce, a rir-se dos próprios lapsos de memória.
Aristocrata, sim, mas Elle, naquele momento limpando , em gestos elegantes, a armação dourada dos óculos, era linda como sua alma branda, sempre a envolver-se com as dores do próximo.
Dêh, ocupada em anotar alguma coisa na indefectível caderneta, denotava, neste frequente gesto, antes de qualquer propósito revanchista, a organização e ordem que lhe caracterizavam a vida, garantindo-lhe uma existência ordenada e tranquila.
E as doenças de Enne, assim como a irascibilidade de Cêh, escondiam almas frágeis, alimentadas com doses fortes de misticismo, considerando o corpo um fardo e o espírito o único legado válido da Criação.
Reunidas, eram peças de um mosaico,cuja figura maior era o pai, falecido há 50 anos e presente, ainda, nos traços e gestos de uma e outra. Quando morreu, Ah, a mais velha, tinha 22 anos. Ajudara a tomar conta das irmãs, enquanto ela dava aulas para o sustento da família. Curioso como a ausência do pai as fez criar mais um pretexto para discussões, À exceção da mais velha, que, pela convivência, não tinha maiores razões para idealizar a figura paterna, as demais criaram seus estereótipos. Quem era amiga de Elle não tinha dúvidas de que se tratava da filha de um descendente dos barões do café. Os interlocutores de Dhê viam-se diante da herdeira de um médico. Quem ousaria duvidar de Cêh, quando ela apresentava a foto do pai comerciante? E não faltavam a Enne oportunidades de mostrar obturações que lhe haviam sido feitas pelo pai dentista. Vaidades que, sem dúvida, há muito eram perdoadas, diretamente do céu, pelo ex-barbeiro Cândido. Mas que foram , aos poucos, virando verdades absolutas na biografia de cada uma, além, naturalmente, de nova causa de profundas divergências.
Sentia-se fraca. Seriam tantas reflexões? Quase um século de vida pesava, mas não lhe traziam dores. Seria o peso do fastio de viver tanto? Não tinha certeza se suportaria, hoje, estóica, mesmo as pequenas contrariedades. Ao longo da longa vida preocupara-se com as transformações do mundo; mantivera-se atualizada com as questões sociais. As lutas das gentes, refletidas em sua própria luta, habitaram seus pensamentos, nortearam seu comportamento e trabalho. O que era relevante- e nisso incluam as relevâncias de suas filhas- merecera-lhe a consideração devida. Mas agora sentia torpor, uma necessidade absoluta de paz. Suave letargia, largar de corpo , aquela agradável sensação que antecede o sono.
Fechara os olhos; leveza de alguém deitado em nuvens. As vozes lá fora , entretanto, agitaram-na um pouco. Aumentavam de volume, misturavam-se nervosamente, disputavam altissonâncias. Era uma discussão..
- Ele era comerciante, sim, e lembro que todas as tardes levava a gente para o armazém.
- Você está louca? Veja aqui, em minha boca, as obturações que ele fez.
- Papai era advogado e qualquer pessoa de nossa cidade, não sendo caduca como vocês, pode provar isso.
- Meu Deus de misericórdia! Elas desconhecem as origens do próprio pai. Pecam contra os mandamentos divinos, pois não honram quem os gerou.
- Não comece você com suas orações. Aqui em minha caderneta está até anotado o dia em que houve a entrega de umas encomendas em nosso armazém.
- Quem é você para interromper minhas preces?
- É melhor a gente parar essa discussão e vamos falar com a mamãe. Ela é quem vai esclarecer tudo. O corpo não mais a obedecia. Não seria desta vez que ela sairia para o quintal, repetindo um procedimento de tantos anos, em circunstâncias iguais. Lamentou tal impossibilidade, justo quando lhe parecia insuportável mais uma querela. Não sentia remorsos. Anos antes, ouvindo debate igual , fazendo o pão caseiro de que tanto gostavam, teria como única reação, o balançar de cabeça e um riso de complacência.
Suas filhas, suas meninas. Continuavam bonitas e iguais. Não seria agora que distribuiria razões. Nem culpas. Seu corpo flutuou. Lembrou-se do dia em que bebeu vinho pela primeira vez. Estava ao lado do marido e sentira a mesma sensação de leveza de agora. Neste momento, parece-lhe que Cândido está ali, novamente. Estende-lhe a mão direita, sorri e a voz que ouve convida-a a um passeio. Um longo passeio Um distanciamento infinito.

Autor: Paulo Motta

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